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Uma voz além do papel

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Já escrevi antes o quanto me deixa feliz encontrar os autores que admiro. Creio que o fascínio em ouvir nossos escritores favoritos se dá porque damos um corpo à voz que nos encanta, a ânsia de confirmar que a beleza vista nas páginas também se reflete no jeito, no olhar, na forma como a pessoa se expressa ali diante de nós. Mia Couto ao vivo é a confirmação da poesia. Jeito tímido, jeans, camiseta e uma voz muito mansa de quem parece ouvir bem mais do que falar. E um falar tão povoado de simplicidade, metáforas e imagens belíssimas que é impossível não se apaixonar por ele.

           

Durante a conversa ontem na Embaixada de Portugal, ele falou de teatro, de infância, de família, de histórias que ouve pelo mundo, do seu amor pelo Brasil, de sua relação com a natureza, de seu país natal e suas desigualdades, de seus autores favoritos, de sua forma de escrever, de seu esquecimento das histórias já escritas... Tanta coisa, tanta poesia implícita no discurso. Igual a outras conversas? Talvez. Já assisti a entrevistas dele sobre esses mesmos assuntos. No entanto, ali tão pertinho, a sensação de partilha e pertencimento é tão maior... Ainda estou encantada.

 

Uma delícia ouvi-lo contar que ficava na cozinha ouvindo a mãe e as vizinhas sussurrarem histórias e o quanto preferia este espaço à sala, onde o pai e outros homens falavam alto de assuntos que não lhe pareciam interessantes. Uma emoção ele contar que deve ao pai o espírito poético de menino que ele reencontra em Manoel de Barros. O quanto caminhar para o trabalho com o pai, perto dos trilhos, vendo-o brincar com as pedras, ensinou-o a ver “brilho até na poeira”. Escutá-lo dizer que “vive e sofre o Brasil”, porque cresceu ouvindo nossa música e lendo nossos autores. E daí lembrar da musicalidade de Rosa que Mia Couto tão lindamente personifica e individualiza em seus livros...

Um momento de insight quando ele falou sobre tradução e explicou que se vê como um tradutor de Moçambique e eu, estudiosa de seu “Último voo do flamingo” no doutorado, vi-me em um vórtex temporal, louca para gravar aquela fala, voltar no tempo e acrescentá-la ao capítulo... Ah, tantas, tantas coisas. Tantos pequenos detalhes que queria muito não esquecer. Sua explicação do quão distraído era quando menino e, certa ocasião, como demorou duas horas para voltar da padaria (na verdade, o pai, preocupado, foi buscá-lo), porque sentou-se na escada para observar as pessoas passarem. “Imaginando as histórias de cada uma delas”.

Bom ele ter sido desde sempre este flâneur, maravilhoso ele traduzir essas observações em poesia... O mundo fica bem mais bonito por existirem autores como ele. E como ele mesmo afirmou, nesses tempos sombrios, a Arte é ainda mais necessária. E textos tão iluminados e inspiradores como os dele tornam a nossa existência mais doce. Agradeço por ter a oportunidade de vivenciá-lo(s).

 

Novembro de 2019

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