Memórias de um anjo

(Alessandra Matias Querido)

​

Da cidade abandonada lá embaixo,

Separada de mim por este espesso e inquebrantável vidro,

Observo apenas os silêncios,

Vejo muitas ruas, casas e prédios vazios.

 

Imagino histórias que ultrapassam gerações,

Imagino contos em pequenos esconderijos,

As pessoas que moraram nas estreitas ruas,

Os sonhos de cruzar o céu infindo.

 

Olhos perscrutam cada aposento,

Decifram a intimidade e o sentido,

Olhos que buscaram astros distantes,

A vontade de compreender o Princípio.

 

Ao alcance das minhas mãos,

Estrelas, nebulosas, meteoros, o infinito...

Lá embaixo, o Caos, o desejo de Paz

E a foice afiada do Destino.

 

Dentro de muitas janelas

Cabeças coroadas de espinhos,

A avalanche de medo e de solidão,

A Morte espreitando num minúsculo perigo.

 

Na cidade abandonada lá embaixo,

Separada de mim por este denso e inalterável vidro,

Observo apenas os soluços,

Vejo muitas casas que hoje não têm vizinhos.

​

Rememoro o início de tudo,

A alegria, a confiança e o riso.

Relembro os dias de assombro,

A espessa fumaça do Mal imprevisto.

 

Ouço ainda tantos lamentos,

Em algumas esquinas abafados gritos,

Pedidos de Perdão por erros do passado,

Remorso pelo que antes não foi percebido.

 

Tão humanos, tão propensos a grandes feitos

E ao mesmo tempo tão mesquinhos.

Tão pequenos, do Divino criação predileta

Ou vítimas do próprio Orgulho tecido?

 

Orações sussurradas no escuro,

Becos assépticos e frios,

Diferente de outras Guerras,

Nesta tudo é estranhamente limpo.

 

Na cidade assombrada lá embaixo,

Separada de mim por este maciço e inexorável vidro,

Observo o Fim de muitas histórias,

Vejo, mas não posso mudar o que foi Escrito.

 

Na cidade assolada lá embaixo,

Todos separados em dias de martírio,

Desejo que seja o Recomeço de quem fica,

Reconciliações, Abraços e novos caminhos...

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(Poema escrito entre 16 e 19 de março de 2020, em homenagem à Itália em meio a triste crise da pandemia do coronavírus)